Aproveitando a postagem anterior, relendo um trecho de Vila dos Confins...
VILA DOS
CONFINS
Mário
Palmério
“João Soares
estava com a razão: política só se ganha com muito dinheiro. A começar pelo
alistamento, que é trabalhoso e caro: tem-se de ir atrás de eleitor por
eleitor, convencê-los a se alistarem, e ensinar tudo, até a copiar o
requerimento. Cabo de enxada engrossa as mãos – e o sedenho das rédeas, o laço
de couro cru, machado e foice também. Caneta e lápis são ferramentas muito delicadas.
A lida é outra labuta pesada, de sol a sol, nos campos e nos currais. É marcar
bezerro, é curar bicheira, é rachar pau de cerca, é esticar arame farpado;
roçar invernada, arar chão, capinar, colher... E quem perdeu tempo com leitura
e escrita, em menino, acaba logo esquecendo-se do pouco que aprendeu. Ler o
quê? Escrever o quê? Mas agora é preciso: a eleição vem aí, e o título de eleitor
rende a estima do patrão, a gente vira pessoa. Acontece, também, que Pé-de-Meia
não quer saber de história: é cabo eleitoral alistador de
gente, pago por cabeça, e tem de mostrar serviço.
Primeiro, a
conversa pacienciosa, amaciando o terreno; a luta, depois: — “Minha vista anda
que é uma barbaridade. E de uns tempos para cá, apanhei uma tremedeira que a
mão não me para mais quieta...” O novato sua, desiste: — “Vai não, Pé-de-Meia.”
Mas o cabo é jeitoso: não força, não insiste — espera. Tempo só de passar a
gastura que a caneta sempre dá no principiante. Tão fácil... — o requerimento
já está pronto, rascunhado no papel almaço a lápis
fininho, macio de apagar: “João Francisco de Oliveira, abaixo assinado,
brasileiro residente...” Depois do jantar, já menos afadigado, João Francisco
tenta de novo. A mulher está perto, os filhos também. O roceiro lavou as mãos,
a lamparina queima claridade dobrada, de bom pavio novo. Repega no servicinho: —
“Sai da frente da luz, menino! Me dá um copo de água, ô Cota. Qual... minha
vista não presta mesmo mais não. Besteira teimar...”
Pé-de-Meia
não deixa afrouxar o embalo: — “Me dá licença, Seu João.” E pega no mãozão
cascudo, pesado tal um caminhão de tora. Vai choferando a bicha, para cima e
para baixo, caminhando com ela por sobre o papel; o rasto fica; primeiro, a
foice espigada do jota; depois, a
laçada bamba do ó; em seguida, mais duas voltas grandes, repassadas e atreladas
uma à outra. Mas ainda falta o remate: o urubuzinho do til que Pé-de-Meia fez
João Francisco desenhar, bem saliente, por cima do primeiro trecho da tremida
assinatura. — “Já varamos um bom eito. Vamos descansar um pouco ainda, falta o Francisco,
falta o de Oliveira...” Não é fácil não senhor, leva tempo.
Mas aos
poucos João Francisco aprende a relaxar a mão, descobre que não carece de fazer
tanta força, já não molha de suor o papel. Animal bom de sela, agora, maneiro
de queixo e ligeiro de rédea, a mão passeia pela dúzia e tanto dos trechos
alinhados, um sob o outro, no comprido requerimento. Quando o caboclo é ruim de
ensino, Pé-de-Meia é quem enche todo o papel, borrando-o de propósito, errando
de velhaco, completando um perfeito e indiscutível requerimento de eleitor da
roça. Mas, quando o cujo é jeitoso da moda do João Francisco, Pé-de-Meia
prefere carregar-lhe a mão durante o serviço todo — do “Exmo. Sr. Doutor Juiz
de Direito” até
o “P.D.” que precede a assinatura. A lamparina clareia forte; a mulher, os
meninos estão debruçados à mesa, em silêncio. A pena ringe alto, mas risca bem
grosso, bonito... Pelo meio do caminho, já dono de si, João Francisco acha até
de conversar para mostrar desembaraço: — “Este é que é o tal de gê? Gostei
dele: uma simpatia de letra!” Precioso o Pé-de-Meia: — “Pois está ficando um
serviço de gente, Seu João. O senhor até que tem jeito — um letraço! O juiz vai
gostar. Agora, treine bem a assinatura — olhe, vou deixar a lápis umas cinco ou
seis amostras — que tem ainda o recibo do título e o dia da eleição. Vamos ver
agora a patroa. "Dê um quinau nele, Dona Cota!” Só que Pé-de-Meia não é um nada adiantado:
dirige-se antes ao marido: —“Com sua licença, Seu João. Me deixe ajudar um
pouco a Dona Cota. Me empreste a sua mão, minha senhora. Aperte bem a caneta...
isto!”
João Soares
estava com a razão. Eleição custa dinheiro. Um cabo eleitoral prático assim
como o Pé-de-Meia garantia o serviço, mas cobrava vinte mil-réis por cabeça. E
as despesas não ficavam nisso: poucos são os registrados, e cumpre fazer o
registro; se o eleitor nasceu ou casou fora do município, tem-se de mandar
buscar a certidão por um positivo de confiança. E lá se vai um dinheirão!
Depois, a
entrega dos títulos. Bóia e pagode. E condução para muita gente — roceiro,
quando viaja, carrega a família toda. A fila em frente do juiz se reveza, e
isso custa mais um ajutório ao Pé-deMeia, cuja presença o eleitor exige para
assisti-lo na hora de passar o recibo. Lá está ele, botando coragem no povo:
—“Não se afobe, capriche. Você está implicado à toa com o efe — a letra é
facinha. Se não decorou direito a voltinha, deixe: o juiz não repara, não...”
(Vila dos
Confins. Rio de Janeiro, José Olympio 1958)
Quanto ao "Buriti Perdido", de Afonso Arinos, também citado na postagem anterior, você pode ler agora mesmo clicando AQUI.
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