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sábado, 6 de outubro de 2012

Trecho da Obra "Vila dos Confins"


Aproveitando a postagem anterior, relendo um trecho de Vila dos Confins...

VILA DOS CONFINS
Mário Palmério

“João Soares estava com a razão: política só se ganha com muito dinheiro. A começar pelo alistamento, que é trabalhoso e caro: tem-se de ir atrás de eleitor por eleitor, convencê-los a se alistarem, e ensinar tudo, até a copiar o requerimento. Cabo de enxada engrossa as mãos – e o sedenho das rédeas, o laço de couro cru, machado e foice também. Caneta e lápis são ferramentas muito delicadas. A lida é outra labuta pesada, de sol a sol, nos campos e nos currais. É marcar bezerro, é curar bicheira, é rachar pau de cerca, é esticar arame farpado; roçar invernada, arar chão, capinar, colher... E quem perdeu tempo com leitura e escrita, em menino, acaba logo esquecendo-se do pouco que aprendeu. Ler o quê? Escrever o quê? Mas agora é preciso: a eleição vem aí, e o título de eleitor rende a estima do patrão, a gente vira pessoa. Acontece, também, que Pé-de-Meia não quer saber de história: é cabo eleitoral alistador de gente, pago por cabeça, e tem de mostrar serviço.
Primeiro, a conversa pacienciosa, amaciando o terreno; a luta, depois: — “Minha vista anda que é uma barbaridade. E de uns tempos para cá, apanhei uma tremedeira que a mão não me para mais quieta...” O novato sua, desiste: — “Vai não, Pé-de-Meia.” Mas o cabo é jeitoso: não força, não insiste — espera. Tempo só de passar a gastura que a caneta sempre dá no principiante. Tão fácil... — o requerimento já está pronto, rascunhado no papel almaço a lápis fininho, macio de apagar: “João Francisco de Oliveira, abaixo assinado, brasileiro residente...” Depois do jantar, já menos afadigado, João Francisco tenta de novo. A mulher está perto, os filhos também. O roceiro lavou as mãos, a lamparina queima claridade dobrada, de bom pavio novo. Repega no servicinho: — “Sai da frente da luz, menino! Me dá um copo de água, ô Cota. Qual... minha vista não presta mesmo mais não. Besteira teimar...”
Pé-de-Meia não deixa afrouxar o embalo: — “Me dá licença, Seu João.” E pega no mãozão cascudo, pesado tal um caminhão de tora. Vai choferando a bicha, para cima e para baixo, caminhando com ela por sobre o papel; o rasto fica; primeiro, a foice espigada do jota; depois, a laçada bamba do ó; em seguida, mais duas voltas grandes, repassadas e atreladas uma à outra. Mas ainda falta o remate: o urubuzinho do til que Pé-de-Meia fez João Francisco desenhar, bem saliente, por cima do primeiro trecho da tremida assinatura. — “Já varamos um bom eito. Vamos descansar um pouco ainda, falta o Francisco, falta o de Oliveira...” Não é fácil não senhor, leva tempo.
Mas aos poucos João Francisco aprende a relaxar a mão, descobre que não carece de fazer tanta força, já não molha de suor o papel. Animal bom de sela, agora, maneiro de queixo e ligeiro de rédea, a mão passeia pela dúzia e tanto dos trechos alinhados, um sob o outro, no comprido requerimento. Quando o caboclo é ruim de ensino, Pé-de-Meia é quem enche todo o papel, borrando-o de propósito, errando de velhaco, completando um perfeito e indiscutível requerimento de eleitor da roça. Mas, quando o cujo é jeitoso da moda do João Francisco, Pé-de-Meia prefere carregar-lhe a mão durante o serviço todo — do “Exmo. Sr. Doutor Juiz de Direito” até o “P.D.” que precede a assinatura. A lamparina clareia forte; a mulher, os meninos estão debruçados à mesa, em silêncio. A pena ringe alto, mas risca bem grosso, bonito... Pelo meio do caminho, já dono de si, João Francisco acha até de conversar para mostrar desembaraço: — “Este é que é o tal de gê? Gostei dele: uma simpatia de letra!” Precioso o Pé-de-Meia: — “Pois está ficando um serviço de gente, Seu João. O senhor até que tem jeito — um letraço! O juiz vai gostar. Agora, treine bem a assinatura — olhe, vou deixar a lápis umas cinco ou seis amostras — que tem ainda o recibo do título e o dia da eleição. Vamos ver agora a patroa. "Dê um quinau nele, Dona Cota!” Só que Pé-de-Meia não é um nada adiantado: dirige-se antes ao marido: —“Com sua licença, Seu João. Me deixe ajudar um pouco a Dona Cota. Me empreste a sua mão, minha senhora. Aperte bem a caneta... isto!”
João Soares estava com a razão. Eleição custa dinheiro. Um cabo eleitoral prático assim como o Pé-de-Meia garantia o serviço, mas cobrava vinte mil-réis por cabeça. E as despesas não ficavam nisso: poucos são os registrados, e cumpre fazer o registro; se o eleitor nasceu ou casou fora do município, tem-se de mandar buscar a certidão por um positivo de confiança. E lá se vai um dinheirão!
Depois, a entrega dos títulos. Bóia e pagode. E condução para muita gente — roceiro, quando viaja, carrega a família toda. A fila em frente do juiz se reveza, e isso custa mais um ajutório ao Pé-deMeia, cuja presença o eleitor exige para assisti-lo na hora de passar o recibo. Lá está ele, botando coragem no povo: —“Não se afobe, capriche. Você está implicado à toa com o efe — a letra é facinha. Se não decorou direito a voltinha, deixe: o juiz não repara, não...”

(Vila dos Confins. Rio de Janeiro, José Olympio 1958)

Quanto ao "Buriti Perdido", de Afonso Arinos, também citado na postagem anterior, você pode ler agora mesmo clicando AQUI.

A parte que nos cabe neste latifúndio...

Fui apresentado à obra de João Cabral de Melo Neto meio que por obrigação. Sua fantástica "Morte e Vida Severina" foi indicada para o Vestibular 1980 da UFMG, que eu ainda no segundo ano do ensino médio, fiz como "treineiro". Confesso que até então nunca fui muito chegado a poemas, talvez pela falta de incentivo para entender essa produção magnífica. "Morte e Vida Severina" mudou minha forma de ver a poesia. Não precisa ser apenas lírica, romântica, utópica e inefável. Poesia pode ser dura, forte, "um tapa na nossa cara". Reli "Morte e Vida" várias vezes. 
No ano seguinte, também por obrigação dos vestibulares, fui apresentado a outros ícones, entre eles um tal de Fernando "Encontro Marcado" Sabino, Autran "Sinos da Agonia" Dourado, Mário "Vila dos Confins" Palmério (que inclusive sempre lembro em épocas eleitorais por mostrar como funciona(va) o coronelismo na compra de votos), Afonso "Pelo Sertão" Arinos (onde consta o "Buriti Perdido", texto que existia na placa junto aos buritis da Lagoa Paulino) e a já conhecidíssima Cecília "Romanceiro da Inconfidência" Meireles
Lamento muito a exclusão da leitura obrigatória de obras no NOVO ENEM. Vergonhoso! 
Também vejo minha filha hoje lendo uma dúzia de livros por ano na escola, sem que o professor sequer faça um comentário sobre a obra, sobre o que há por trás daquele texto (na verdade, boa parte é leitura quase recreativa, de valor literário duvidoso.) Felizmente a baixinha adora ler e devora livros calibrosos por conta própria... mas na verdade eu gostaria de vê-la sendo apresentada a esse tipo de literatura: de explicação, provocação, leitura e releitura das entrelinhas. Ler por ler? Para ocupar o tempo?
Li com minha filha o trecho abaixo de "Morte e Vida Severina", enquanto assistíamos ao vídeo. Acho que ela ficou sensibilizada. Em alguns segundos ela, com seus 13 anos, conseguiu entender certas expressões que ainda não tinha condições de entender mas que o tempo todo cai sobre sua cabeça nas aulas de geografia-que-se-confunde-com-história. Expressões como latifúndio, regime escravo, reforma agrária e por aí vai. 
Permitam-me um parênteses: - Caramba, na minha época geografia era geografia e história era  história. Primeiro a geografia física (o relevo, a vegetação, o clima), depois a população, a energia, os recursos naturais, a indústria e, com o andar da carruagem da história, lá no final, as discussões sobre tópicos mais complexos e que necessitam de uma boa dose de maturidade (senão vira decoreba) acerca dos sistemas econômicos e políticos. Que zona que virou isso! Está a geografia a falar de socialismo e capitalismo enquanto a história ainda está discutindo a colonização da América. Está a geografia a falar de Guerra Fria, sem que a história tenha sequer mencionado a Segunda Guerra Mundial. Parece até uma situação contra a qual me rebelei e recusei-me a seguir a programação oficial em uma das escolas que lecionei: começar a biologia pela genética! 
Voltando ao assunto, vai aí então a homenagem a um dos brasileiros que merecia um Nobel de Literatura.


Essa cova em que estás, 
com palmos medida, 
é a conta menor 
que tiraste em vida. 

é de bom tamanho, 
nem largo nem fundo, 
é a parte que te cabe 
neste latifúndio. 

Não é cova grande. 
é cova medida, 
é a terra que querias 
ver dividida. 

é uma cova grande 
para teu pouco defunto, 
mas estarás mais ancho 
que estavas no mundo. 

é uma cova grande 
para teu defunto parco, 
porém mais que no mundo 
te sentirás largo. 

é uma cova grande 
para tua carne pouca, 
mas a terra dada 
não se abre a boca.


(João Cabral de Melo Neto, in Morte e Vida Severina)

PS.: O vídeo é um trecho de um especial produzido pela Rede Globo de Televisão, num de seus momentos de lucidez.