(Esta postagem foi feita em 05.03.2011, mas pela atualidade e pelo surgimento recentes de casos de acidentes no período, foi elevada momentaneamente para as primeiras posições do blog para facilitar acesso.)
Vou começar esse post de uma forma diferente. Segue abaixo o relato do artista plástico Luciano Diniz (condensei algumas partes). Esse relato foi publicado na comunidade do Orkut sobre os “Causos de Sete Lagoas”:
Resolvi abrir um depósito que tenho na entrada do meu atelier para uma faxina de rotina, e eis que me deparo com o local infestado de aranhas. Matei muitas, ou quase todas pensei eu, mas no dia seguinte me apareceu uma mancha esbranquiçada na lateral externa do pé direito, bem na junta. Lembrei-me então de um vídeo que vi sobre o assunto, do sintoma aparente do efeito de uma aranha pica o ser humano, e me dirigi à uma farmácia para me medicar. Tomei comprimidos, passei pomadas, e fiquei tranquilo que em alguns dias aquilo estaria desaparecido.
Mas nada disso ocorreu, ao contrário, foi só piorando, passei por 8 médicos que não descobriam o que eu tinha, mesmo avisando estar desconfiado da aranha. Fiz todo tipo de exame possível, e tudo estava perfeito, glicose, triglicérides, colesterol, etc, tudo em ordem e o pé só piorando, o que era um mistério, pois tinha saúde excelente, frequentava há anos a academia, boa alimentação. E fui só piorando, veio uma bengala, depois as muletas, até que caí de cama, sem conseguir andar e a ferida só aumentando, até então já contornando por trás até quase o peito do pé, e uma dor insuportável.
Finalmente, descobri que havia sido realmente vítima de uma aranha. Graças eu ter uma saúde excelente devido à alimentação e a malhação, me salvei. Poderia ter morrido ou perdido o pé.
Fui então enviado imediatamente a um cirurgião que me operou e retirou todo o tecido necrosado e envenenado. Fiquei 32 dias imóvel sobre uma cama sentindo dores desesperantes, pois só sobraram os nervos sobre os ossos ao retirar toda a carne já dissolvendo e necrosando, mais 6 meses de cama em recuperação, e mais de um ano nas muletas. Hoje me sinto praticamente um deficiente físico, pois não tenho mais os movimentos do pé, ainda ando com dificuldade, mas pelo menos estou vivo e andando, graças à Deus.
Muito provavelmente o nosso amigo Luciano foi vítima da aranha-marrom (gênero Loxosceles). A aranha-marrom, pertencente à família Sicariidae, também é conhecida como aranha-violino (devido a uma mancha escura em forma de violino que geralmente está presente no dorso do animal). Essa aranha é originalmente de ambiente cavernícola, entretanto já se adaptou ao interior de nossas residências. É uma das poucas aranhas que se alimentam de insetos mortos (a maioria come insetos vivos) que ela encontra com facilidade em nossas casas. A lagartixa de parede é o predador dessa aranha no ambiente doméstico. A Loxosceles possui tamanho total (corpo e patas) entre 3 a 4 centímetros no máximo.
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Loxosceles. Observe a mancha dorsal em forma de violino (nem sempre é bem visível). Crédito da foto: Ubirajara de Oliveira (Bira) - Laboratório de Aracnologia - ICB/UFMG.
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Nas nossas casas ela habita normalmente os armários, guarda-roupas, atrás de quadros e entre as telhas (quando não há laje). Normalmente é dócil, não ataca. Porém, se comprimida contra o corpo ela inocula o veneno. A picada não dói, pois as quelíceras são muito pequenas e não provocam dor ao penetrar na pele. O veneno também não é neurotóxico, como o da armadeira. Mas a picada deixa o veneno que é NECROSANTE. Assim, de 24 a 48 horas depois da picada seguem os sintomas iniciais descritos pelo Luciano, inicia-se com uma mancha parecendo mármore. Depois vai complicando e chega a necrosar toda a pele.
Médicos e farmacêuticos normalmente não têm informação sobre esse tipo de acidente. Geralmente confundem com furúnculo ou cabelo encravado e não dão muita importância. Na dúvida, recorra ao HPS João XXIII em BH e mostre a lesão. Eles conhecem bem esses casos pois são assessorados pelos biólogos da UFMG e são a referência para esse tipo de acidente. Acredite, biólogos conhecem mais esses casos do que os médicos, afinal de contas, se expõem mais a esses acidentes em cavernas e tal. Não há nos Cursos de Medicina, uma disciplina que trate com detalhes desses casos. O pessoal do Laboratório de Aracnologia da UFMG montou um curso excelente sobre o assunto. Fiz o curso e estive presente em algumas aulas em outras vezes que foi oferecido. Infelizmente, nas turmas que frequentei, nenhum matriculado era aluno do curso de medicina. Só biólogos mesmo e alguns curiosos interessados no assunto (inclusive meu aluno Saulo - que de vez em quando dá as caras aqui no blog).
A procura dessas aranhas em nossas casas é importante. Não as confunda com aquelas aranhas pernudas que ficam no canto das paredes, quase lá no teto. Aquelas - Pholcus phalangioides - não fazem nadinha, no máximo nos ajudam comendo pernilongos. Procure cuidadosamente (use luvas) atrás de quadros na parede. Nossos colegas biólogos do Laboratório de Aracnologia da UFMG coletaram mais de 300 numa casa de alto padrão no bairro Mangabeiras em BH, sem nenhum acidente na casa, pois as aranhas não atacam. Só picam, como já mencionei, se pressionadas contra nosso corpo (dentro de sapatos, roupas...).
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Uma Loxosceles perto de sua teia onde deposita ovos. O corpo é pequeno, cerca de 8 a 10 milímetros. Mas as pernas são alongadas. Crédito da foto: Ubirajara de Oliveira (Bira) - Laboratório de Aracnologia - ICB/UFMG. |
O tratamento é a inoculação do soro anti-loxosceles até no máximo 48 horas do acidente. Pode usar o soro depois, mas o efeito será menor e algum grau de ferida vai se estabelecer. Ou seja, vá para o HPS João XXIII, rápido. Farmácias, remedinhos e pomadinhas não farão nenhum efeito. No máximo, poderão evitar a infecção por bactérias quando a ferida estiver gigante.
Ao lado, imagens chocantes de lesões tegumentares causadas pela Loxosceles. Eu não aconselho, mas se tiver estômago, clique na imagem para ampliar. Não consegui os créditos das duas primeiras imagens, quem souber, por favor me informe. As demais estão devidamente referenciadas. Febre, dor, edema local, mancha avermelhada, irritabilidade, taquicardia, náuseas e vômitos são sinais e sintomas que costumam acompanhar o desenvolvimento das lesões.
Felizmente (bom, melhor seria não ter acontecido, claro!), nosso amigo Luciano foi vítima da forma Tegumentar, ou seja, "apenas" lesões de pele (mas que foram muito graves). Em 2% dos casos pode se estabelecer a forma Visceral, ou seja, o veneno ataca os órgãos internos, em especial o fígado e os rins causando sintomas sérios e progressivos: febre alta e persistente, destruição das hemácias, com consequente anemia e icterícia, perda de proteínas na urina, acidose metabólica, desequilíbrio hidroeletrolítico e crise hipertensiva. Arritmia cardíaca completa e agrava o quadro. A urina fica escura como na Hepatite ("urina de coca-cola") e o prognóstico é grave, especialmente em crianças e idosos, muitas vezes culminando em óbito.
Ramon Lamar de Oliveira Junior